OFICINA GRAMATICAL
Obra: Veia Poética
Negrito cinza: remoção.
Negrito azul: inserção.
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Ele entrou no consultório como um boi entra no matadouro,:1 timidamente,.2 Com a voz meio fraca, cumprimentou o sisudo médico que, sem olhar para ele, fazia anotações numa caderneta.
— Bom dia, doutor.
— Bom dia, entre.
Ficou em pé,3 no meio da sala, sem saber o que fazer. Foi nesse instante que o médico levantou a cabeça, parecendo notar sua débil presença, parada feito estátua.
— Por favor, sente-se.
— Obrigado, doutor.
— O que o traz aqui?
— Bem, doutor, ando com uns esquecimentos,.4 dDe vez em quando,5 me dá um branco, fico sem saber o que dizer ou escrever.
— Sei. E quando isso acontece?
— Acontece mais à tardinha, doutor, depois do expediente.
— E quando começou?
— Dizer assim, o momento certo, não sei não, mas deve ser de uns dois ou três meses pra cá.
— Sei. Tem algum vício?
— Não, doutor.
— Fuma?
— Não, doutor.
— Bebe?
— Só nas sextas-feiras,6 depois do expediente e socialmente, apesar de que, às vezes,7 ultrapasso o limite, mas não a ponto de substituir a bebida pela água,.8 dDeus9 me livre, doutor, ainda não cheguei a esse extremo,.10 cConheço um cara que troca a água pela cerveja, ,;11 nunca o vi ele tomar água,.12 aA minha prima só toma coca,;13 não toma água,14 não,.15 aAcho que não sou viciado em bebida, doutor.
— Sei. Vamos examinar a sua pressão. Ela é boa?
— Não sei não, doutor, nunca me preocupei com isso.
— Sei. Mas deveria. Tira Tire16 a roupa e deite-se aqui.
— Tirar a roupa?
— Sei. Sim, tira.
Desajeitado, tirou tudo. Nunca tinha ficado nu na frente de outro homem,;17 era a primeira vez.
— Sei. Deite-se de barriga para cima.
Ele ajeitou-se na cama.
— Sei. Fique normal como se estivesse na sua cama, na sua casa, não precisa ter medo.
— Sei.
— Tá gozando da minha cara?
— Sei... não, não,;18 desculpe-me, doutor, foi sem querer.
— Sei. A batida do coração está normal. A pressão também.
... 19
— Sei. Deixe-me ver as pontas dos seus dedos.
Ele esticou o braço e abriu a mão.
— Sei. As duas, por favor.
Abriu a outra mão.
— Sei. Digita muito?
— Um pouco, doutor.
— Sei. Tem notado alguma coisa quando digita?
— Depois de um certo tempo as pontas dos dedos começam a adormecer e sobe uma dor pelo braço.
— Sei. Já sei o que é.
— Sabe, doutor?
— Sei. Sei sim.
— E o que é, doutor?
— Sei. É a sua veia poética que não está funcionando bem.
— Sei,;20 veia poética?
— Sei. Tá me gozando, é?
— Não sei... quer dizer, não, doutor.
— Sei. Você precisa de uma transfusão.
— De sangue?
— Sei. De letras.
— Letras, doutor?
— Sei. Pode vestir-se. Sim, de letras. Ou talvez,21 de palavras. Letras,22 o senhor já tem bastante,;23 e, 24 fraco como está, não conseguirá juntar muitas.
— Isso dói, doutor?
— Sei. Não dói,;25 acho que não dói,;26 nunca precisei desse tipo de transfusão.
— Sei, doutor.
— Sei. Tá me gozando de novo?
— Sei... não sei... quer dizer, não, doutor,;27 claro que não.
— Sei. Vou passar também uma receita leve para o senhor.
— O que eu preciso fazer, doutor?
— Sei. Praticamente não terá que fazer nada. Vou receitar para o senhor: Tolstoi, Dostoievski (isso para começar); depois, Faulkner, Henry James (assim que terminar com os russos); em seguida,:28 Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos... e não esqueça os poetas, de preferência, todos,;29 mas o melhor é Drummond,;30 Gullar também,31 e os atuais,.32 aAí o senhor vai ter que procurar, pois é difícil achá-los,;33 ficam escondidos, não aparecem nos rádios,34 nem nas tevês. Ah, não esqueça Hilda Hilst!
— E quando deverei ingerir tudo isso, doutor?
— Sei. Depois da transfusão de palavras. Com a transfusão, e seguindo rigorosamente a prescrição de leitura, você estará em forma novamente por mais uns 70 anos. Quantos anos o senhor tem?
— 57, doutor.
— Sei. Com isso o senhor viverá mais de 100 anos.
— E onde tenho que fazer a transfusão, doutor?
— Sei. Ah! o senhor tem também Veia Bailarina?
— Veia bailarina?!
— Sei. Do Ignácio de Loyola Brandão.
— Não tenho não, doutor.
— Sei. Estava me esquecendo,.35 Ignácio de Loyola Brandão é atual,.36 não pode deixá-lo de lado,.37 vou escrever aqui, ao pé da receita.
— Sei, doutor.
— Sei. Tá me gozando?!
— Não... claro que não, doutor.
— Sei. Então passe bem, 38 e vê se cuida dessa sua veia poética.
— Sei... Oh! desculpe, doutor, e obrigado.
— Sei. Ao sair, feche a porta.
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3 — Não se separa a locução adverbial (no meio da sala) quando a mesma, dentro da oração, figura na sua posição normal da ordem direta; no caso, final da oração.
4 — Quando o contexto impõe pausa mais demorada, usa-se ponto ou, em homenagem ao estilo, reticências.
5 — Locução adverbial (dDe vez em quando), figurando fora da ordem direta (no caso, em início de oração), exige vírgula.
6 — Idem item 3.
7 — Idem item 5.
8 — Idem item 4.
9 — No texto original, antes da substituição da vírgula pelo ponto, Deus, que é nome próprio, foi grafado, erradamente, com inicial minúscula.
10 — Idem item 4.
11 — Não há justificativa normativa para a vírgula. Se o contexto impõe uma pausa não muito longa, usa-se o ponto-e-vírgula.
12 — Idem item 2.
13 — Idem item 11
14 — Não há justificativa normativa para o uso da vírgula.
15 — Idem item 2.
16 — Alteração no pronome pessoal de tratamento, que, de “você” (conjugação na 3ª pessoa), passou a “tu” (2ª pessoa). Em vez do "Tire", há que usar o “Tira”, imperativo afirmativo, 2ª pés. sing. (tu).
17 — Idem item 11.
18 — Idem item 11.
19 — Não há justificativa para as reticências.
20 — Idem item 11.
21 — O termo “talvez”, mesmo com função adverbial, não é separado por vírgula.
22 — O objeto direto “letras”, estando em início de oração e, portanto, fora da ordem direta, exige separação por vírgula.
23 — Em período composto por coordenação, separam-se, com ponto-e-vírgula, as orações quando uma ou mais contém vírgula.
24 — A oração subordinada adverbial (fraco como está) exige vírgula separadora.
25 — Idem item 11.
26 — Idem item 11.
27 — Idem item 11.
28 — Enumeração exige dois-pontos.
29 — Idem item 11.
30 — Idem item 11.
31 — Não há justificativa normativa para o uso da vírgula.
32 — Idem item 2.
33 — Idem item 11.
34 — Não há justificativa normativa para o uso da vírgula.
35 — Idem item 11.
36 — Idem item 11.
37 — Idem item 11.
38 — Se, no período composto por coordenação, os verbos de (no caso) ambas as orações referem-se a uma mesma pessoa, não se usa vírgula separadora.
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Embora aberto a todos que apreciam todas as formas de composição poética, este espaço é dedicado preferencialmente àqueles que cultivam a construção do poema chamado clássico, em que estão presentes os elementos obrigatórios da composição poética escrita, tais como rima, métrica, entonação, etc.
quinta-feira, 9 de setembro de 2021
Análise: Veia Poética
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